Associar cheiros a imagens, apalpar as cores, sentir o gosto dos sons. A sinestesia mais parece resultado de uma experiência lisérgica. Trata-se, no entanto, de uma rara condição neurológica que ainda confunde a ciência.
Eu sinto uma forma orgânica, quase redonda, com a consistência de um cogumelo. Posso colocar meus dedos em pequenos buracos na sua superfície. Não é uma imagem mental. Eu não vejo nada. Eu não imagino nada. Eu sinto isso nas minhas mãos, como se estivesse bem na minha frente. Daí as formas se desenvolvem, surge uma espécie de corda; se eu coloco a mão nessa corda, sinto as folhas oleosas de uma pequena parreira.” É assim que Michael Watson, professor na Carolina do Norte, resume o sabor da angustura, composto aromático que reúne dezenas de ervas amazônicas, utilizado em drinques famosos como o Manhattan – que também leva uísque, vermute tinto e cereja. A descrição está no livro The Man Who Tasted Shapes (“O homem que saboreava formas”, inédito no Brasil), escrito em 1993 pelo neurologista americano Richard Cytowic.
Watson tem sinestesia, uma condição neurológica que faz com que um estímulo em um sentido provoque reações em outro, numa espécie de análise combinatória entre visão, audição, olfato, paladar e tato. Sinestetas ouvem cores e sentem sons, por exemplo. “As sensações ocorrem ao mesmo tempo, sem que uma substitua outra. Há sempre uma adição, nunca uma troca”, afirma Peter Grossenbacher, neurologista americano que estuda a sinestesia.
A esta altura, você que ouve falar em férias e logo visualiza o litoral baiano ou que não pode sentir cheiro de polenta que enxerga sua avó debruçada sobre o fogão, deve estar se achando o próprio sinesteta. Mas não é tão simples. A maioria de nós é capaz de relacionar uma imagem a um som, ou a um cheiro. “A diferença é que fazemos isso a partir da memória”, diz John Harrison, pesquisador da Universidade de Cambridge, na Inglaterra. Ou seja: não há confusão sensorial.
Harrison explica que, no caso da experiência visual convencional, existem três modalidades distintas: a imagem pode ser percebida pela retina (cor, forma e movimento); pode ser imaginada, no chamado olho da mente (como fechar os olhos do seu quarto): ou ainda pode ser fruto de alucinação, isto é, uma imagem que simplesmente não está lá. Ele acredita que as imagens sinestésicas sejam semelhantes às que produzimos durante o sonho. “No sonho, elas não são criadas pela retina, mas, sim, como tem sido comprovado por exames de eletroencéfalograma, por meio de pulsos nervosos e eletroquímicos”, afirma. Segundo John Harrison, drogas alucinógenas, como LSD, são capazes de produzir sensações sinestésicas. Porém, ao contrário da sinestesia real, as alucinações são totalmente imprevisíveis e não seguem um padrão cognitivo pré-determinado, isto é, as imagens das viagens de ácido podem variar em dois sentidos distintos, com base no mesmo estímulo. Na sinestesia de nascença, isso não ocorre.
Segundo Grossenbacker, a visão de um sinesteta normalmente são percebidas fora do corpo. “As cores e os movimentos se formam em uma espécie de tela virtual, localizada a cerca de meio metro de distância do olhos”, afirma. As descrições das cores de uma experiência sinestésica são simples – restringindo-se a formas geométricas, cores e texturas – porém detalhadas. Não simplesmente azul, mas azul-escuro, com brilho e textura de pequenos losangos alaranjados, por exemplo.
No nosso dia-a-dia, a mistura das sensações está presente na linguagem: é comum utilizarmos mais de um sentido para explicar as coisas como elas nos parecem. Descrevemos pessoas como doces ou amargas e as cores (estímulos visuais) podem ser quentes ou frias (sensações táteis). A essa estratégia lingüística também chamamos sinestesia. E aqui o termo, além de significar uma condição neurológica, passa a expressar também uma figura de linguagem.
Essa capacidade estilística de combinar sensações fez da sinestesia um recurso de estreita relação com o universo literário e artístico. Um namoro que se tornou mais intenso nos poetas simbolistas, como o francês Charles Baudelaire (1821-1867) ou o brasileiro Cruz e Sousa (1861-1898).
Mas para os portadores da sinestesia neurológica não se trata de poesia. Com eles, algo físico acontece. Eles são capazes de vivenciar as diferentes sensações de forma única e surpreendente. Sean Day, professor de lingüística na Universidade de Ohio, nos Estados Unidos, compilou casos descritos na literatura médica e observou 35 tipos de sinestesia. O mais comum é associar cores a grafemas, isto é, ver uma cor ao ler uma letra, palavra ou número. “Alguns sinestetas apresentam mais de dez formas de sinestesia, porém o padrão normal é um ou dois tipos se destacarem em cada paciente”, afirma Grossenbacher.
O que causa sinestesia?
Mas, afinal, por que pouquíssimas pessoas desenvolvem a sinestesia, enquanto a imensa maioria não é sequer capaz de entendê-la? Não há consenso no meio científico e existem pelo menos seis teorias disponíveis. Para John Harrison, que ao lado de Simon Baron-Cohen, chefe dos departamentos de Psiquiatria e Psicologia Experimental da Universidade de Cambridge, nos Estados Unidos, defende a tese de que todos somos sinestetas até os três meses de idade mais ou menos. A partir daí e até os seis meses de vida, os neurônios são definitivamente isolados uns dos outros, por uma camada de gordura chamada mielina. “Nos sinestetas, ela aparece em menor grau, dando origem a essa hipersensibilidade”, afirma Harrison.
Em exames de tomografia, a dupla de cientistas ingleses constatou que em sinestetas que possuem audição colorida – isto é, enxergam padrões de cores quando estimulados por sons – um elemento sonoro produz atividade cerebral nas áreas dedicadas tanto à audição quanto à visão. Em não-sinestetas registra-se atividade cerebral apenas na região dedicada à audição.
Eles estimam que exista um sinesteta em cada grupo de 2 000 indivíduos. (Algo como 90 000 pessoas, só no Brasil.) A maioria dos casos ocorre em mulheres – cerca de 75% – e é provável que a transmissão seja genética. Harrison, autor do livro Synaesthesia: The Strangest Thing (“Sinestesia: a mais estranha das coisas”, inédito no Brasil), lançado em 2001, sugere que quando o pai é sinesteta, as filhas sempre herdam a condição.
Os códigos de conexão entre as sensações de cada sinesteta são absolutamente pessoais e não variam ao longo do tempo. Isso quer dizer que não existe um dicionário de equivalência som-cor. Para garantir a consistência e a autenticidade da experiência sensorial, Harrison conduziu testes idênticos em sinestetas e não-sinestetas. Para cada som, a pessoa descrevia as cores e/ou imagens que percebia. Um ano depois, foi feita a contraprova. Os sinestetas, que não foram alertados sobre a repetição da experiência, produziram respostas consistentes em mais de 95% dos casos. Já o grupo de controle, formado por não-sinestetas, apesar de ter sido avisado que a experiência seria repetida apenas um mês depois, acertou menos de 30% das respostas. Harrison estudou duas gêmeas univitelinas, ambas sinestetas, e cada uma delas via cores diferentes para um mesmo estímulo sonoro.
Richard Cytowic afirma, no entanto, que a sinestesia ocorre porque partes do cérebro estão desconectadas umas das outras, a exemplo do que ocorre durante as alucinações. Segundo ele, é possível traçar uma analogia com as enxaquecas, pois em ambas condições um estímulo acarreta o que chama de rebalanceamento do metabolismo regional, ou uma alteração física do funcionamento da região do sistema límbico.
Cytowic é um neurologista pouco ortodoxo, que defende que o médico fale menos e escute mais, utilizando exames clínicos apenas para confirmar um diagnóstico. Isso reduziria a excessiva dependência tecnológica de aparelhos cada vez mais sofisticados, que estaria reduzindo o médico a ser, no limite, apenas um técnico bem informado. Ele acredita que o impacto da sinestesia é tão profundo que não se enquadra na concepção normalmente aceita do funcionamento do cérebro.
Em um aspecto, Cytowic concorda com Baron-Cohen e Harrison: o estudo da rara e fascinante condição neurológica da sinestesia pode ajudar a ciência a compreender como todas as pessoas ouvem, pensam e sentem. Portanto, é preciso trazer essa linha de pesquisa para debaixo dos holofotes da ciência.
Experiência única?
Na infância, os sinestetas têm certeza absoluta que todos percebem o mundo à sua maneira. Quando perguntam para colegas de escola ou familiares, coisas como “Qual a cor do seu cinco?”, recebem como resposta uma cara de espanto, gargalhadas, ou algum comentário maldoso. “Sempre tive sinestesia. Mas não falava com ninguém, pois as pessoas me achavam louca. Até que li um artigo no The New York Times e na hora exclamei: ‘Sou eu!’ Agora que sei que não sou louca, é bem divertido”, diz Cynthia Cochran, terapeuta residente na Geórgia, nos Estados Unidos. Mas se a vida com sinestesia pode ser muito diferente da nossa, não é comum ouvir um sinesteta reclamar de sua condição especial.
As sensações desencadeadas pela sinestesia geralmente são agradáveis e, salvo raras exceções, apenas ajudam a perceber melhor o mundo. “Essas pessoas não querem se livrar da condição por nada nesse mundo. Elas acham que sua vida é enriquecida pela maior capacidade sensorial”, afirma Lynn C. Robertson, do departamento de psicologia da Universidade da Califórnia, em Berkeley, nos Estados Unidos. Segundo ela, os sinestetas são dotados de memória superior à média, pois costumam associar informações às sensações sinestésicas causadas por elas. “Grafia e gramática são naturais para mim. Percebo na hora quando uma palavra está grafada incorretamente, ou se há um erro de gramática. As cores simplesmente não batem. Minha sinestesia é muito útil”, diz a pintora nova-iorquina Carol Steen, que enxerga cores em letras e números.
Há, claro, exceções. Anina Rich, pesquisadora do Departamento de Ciência do Comportamento, na Universidade de Melbourne, na Austrália, menciona uma sinesteta que se queixa de ouvir um som muito agudo, que causa dor de cabeça, quando vê uma cortina vermelha. A literatura médica inclui o caso de uma mulher que deixou o carro no meio da rua, pois as reações táteis de seu corpo aos estímulos visuais a impediam de guiar.
Se por um lado os sinestetas gostam de sua percepção ampliada do mundo, eles costumam, porém, evitar o excesso de estímulos. “Alguns procuram se manter afastados de ambientes barulhentos, aglomerações humanas e lugares lotados”, diz Grossenbacker. Um desconforto para sinestetas que associam letras escritas a cores, por exemplo, é a interferência das cores das palavras escritas que diferem do código de cada sinestésico de cada um. Ou seja, quando a cor da letra A provoca a sensação do azul-escuro mas está escrita em amarelo o cerébro pode confundir os estímulos. É algo parecido com o incômodo que sentimos ao escutar duas músicas distintas em cada um dos fones de ouvido, ou quando olhamos isoladamente para duas fotos diferentes, uma com cada olho.
A experiência sinestésica é de difícil apreensão para os não-sinestetas. As pessoas podem entender a sinestesia racionalmente. Porém, ironicamente, ela se trata exatamente do oposto: uma sensação absolutamente subjetiva. O próprio John Harrison, um dos maiores especialistas do mundo no assunto, é humilde quando afirma que não é capaz de sentir como um sinesteta. “Seria como descrever a visão para um cego de nascença. Ele pode entender racionalmente como funciona a visão e até mesmo como o cérebro produz imagens na retina, mas jamais terá a sensação de enxergar”, diz.
Você tem sinestesia?
A sinestesia geralmente é diagnosticada por meio de relatos e entrevistas. A seguir cinco pontos importantes que são considerados pelos especialistas.
A sinestesia É involuntária
Se você ouve cores ou vê sons involuntários, essa é uma condição sinestésica. Não são todos sons ou imagens que acionam a sinestesia, porém um sinesteta geralmente não consegue bloquear a percepção, isto é, não existe um botão do tipo liga/desliga
A sinestesia é projetada
A percepção sinestésica é vivenciada fora do corpo. Isto é, não no olho da mente, mas, sim, a certa distância física bem próxima ao rosto do sinesteta
As percepções são duradouras, discretas e genéricas
As associações sinestésicas não se alteram com o passar do tempo. Isso quer dizer que um mesmo som sempre dá origem a uma mesma imagem. Discretas, pois não costumam interferir em outras atividades, tampouco represar o sentido original. E genéricas, pois as imagens costumam ter cores, formas geométricas e texturas simples: não são quadros surrealistas
A experiência sinestésica permanece na memória
Se você diz: “não sei o nome dele, mas tenho certeza que é verde”, eis uma indicação de que você pode ser sinesteta. A experiência sinestésica não apenas permanece na memória, como auxilia a registrar e recordar fatos, nomes, números etc.
A sinestesia é emotiva e vívida
Um autêntico sinesteta tem certeza de que a sua experiência sinestésica é real e a distingue de estímulos sensoriais.
Para saber mais
NA LIVRARIA:
Synaesthesia: The Strangest Thing
John Harrison, Oxford University Press, Reino Unido, 2001
The Man Who Tasted Shapes
Richard Cytowic, Abacus, Reino Unido, 1994
Synaesthesia: Classic and Contemporary Readings
Simon Baron-Cohen e John Harrison (org.), Blackwell, Reino Unido, 1996
Synesthesia: a union ofsenses
Richard Cytowic, Springer, EUA, 1989
NA INTERNET:
http://www.psychiatry.cam.ac.uk/isa/frames.html
http://www.zzapp.org/neuroman/
http://www.mit.edu/synesthesia/www/syn_refs.html
Revista Superinteressante
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